Piquenique
Cenário e enquadramento: Na situação presente, trata-se de um
“directo” durante um serviço noticioso, realizado a partir de um pinhal, onde
uma família de cinco pessoas [casal e filhos pequenos] come a uma fresca.
Trata-se de uma situação de piquenique típica de um domingo de verão, com a
toalha estendida no chão, os membros da família à volta, felizes com a sua
condição, com a felicidade que a vida lhes reservou… O único elemento que
destoa é mesmo a presença de uma arca frigorífica, das grandes, ligada a um
pequeno gerador eléctrico [ou não, se pretender aprofundar-se o nonsense da coisa]. Este momento visual
deve constituir o elemento forte do Sketch, a punch line do texto. Aliás, a arca deverá estar sempre presente ao
longo de todo o Sketch, como elemento desconstrutor, o que quer que isso seja.
Jornalista – Estamos em directo deste
pinhal perto da praia, onde muitas famílias portuguesas aproveitam para fazer
um piquenique e passar algum tempo em contacto com a natureza. Vamos falar com
este senhor, que parece ter trazido tudo (a
câmara foca a arca frigorífica) o que faz falta para fazer face às altas
temperaturas que se sentem no dia de hoje. Então, o que é que traz na arca
frigorífica?
Pai chefe de
família – É
o meu paizinho e a minha mãezinha… (Aproxima-se
do electrodoméstico, acaricia-o, há carinho e amor sincero naquilo)
Jornalista – (Visivelmente surpreendido e enojado) Mas o senhor tem a noção de
que o que está a fazer é um crime?! Não vê que eles podem morrer de hipotermia?
Mulher mãe de
família –
Oh Brito, eu não te disse que era para deixares os paizinhos em casa?! Eu bem
te disse que isto ia dar para o torto! (Pausa,
abana nervosamente a cabeça. Continua:)
Tu e essa mania que eles têm de arejar!
Pai chefe de
família – (Virando-se para a mulher) Cala-te mas é
para aí! Se fosse por ti, os meus paizinhos nunca saiam de casa! Na semana
passada, quando trouxemos os teus paizinhos na arca, vieste toda contente!
Jornalista – (Ainda incrédulo) Mas não vê que os seus paizinhos podem morrer de
frio aí dentro… Aliás, a esta hora se calhar já faleceram…
Pai chefe de
família – O
paizinho, por acaso, já faleceu esta manhã, antes de sairmos de casa… Acordou
bem e conforme me estava a dizer bom dia, assim “ficou”! Mas como já tínhamos
tudo organizado para vir para aqui… Os panados e o arroz branco (quer um rissolinho? Oh Amélia, dá aí
rissolinho ao senhor…)! Quer dizer, dava um grande transtorno estar a
alterar tudo. A minha mãezinha é mais rija e está ali dentro como aço! Quer
ver? (Ao mesmo tempo que pergunta,
levanta a tampa da arca. Vê-se o pai, sentado, com o pescoço para baixo, como
se estivesse a dormir. A mãe levanta-se e sorri para a câmara. O Pai, chefe de
família diz:) Oh mãezinha, diga boa tarde às pessoas da televisão, que
estão a fazer-me uma entrevista! (O
jornalista tenta colocar uma questão à senhora, mas o Pai, chefe de família começa
a fechar a tampa da arca, dizendo:) vá para dentro, mãezinha, que está um
calor cá fora que não se aguenta! Olha que na televisão eles estão sempre a
dizer que é preciso ter muito cuidado com as criancinhas e os velhinhos à conta
do calor! Vá fazer companhia ao paizinho… (Fecha
a tampa!)
Jornalista – Não acha que o funeral do
seu pai é mais urgente do que fazer um piquenique?
Pai chefe de
família – Depende
da pessoa que morre! Não sei se me está a compreender?! Se for uma pessoa
importante, sei lá, um presidente de junta, um presidente de câmara… (Pausa. Pensa em graus de importância,
remata:) um sucateiro, enfim, pessoas de destaque, aí ‘tou d’acordo, aí
pára tudo, que há coisas com que não se brinca! Agora, o meu paizinho foi um
desgraçado toda a vida, nunca andou na política…
Jornalista – Então e agora o que é que
vai fazer?
Pai chefe de
família –
Uma vez que pergunta, agora vou ali adiante num instante meter gasóleo à bomba,
que ó domingo é 8 cêntimos mais barato!
Jornalista – Referia-me aos seus
paizinhos?
Pai chefe de
família – A
minha mãezinha está bem, não podia estar melhor. É uma pessoa um bocadinho fria,
que não chora por dá cá aquela palha… De maneira que não deve estar a estranhar
nada, nada o ambiente… (As crianças
batem-se, uma delas chora! O pai intervém:) Oh meninos, toca a parar
imediatamente! Se não, já sabeis, meto-vos aos três na arquinha com os avós! (As crianças param. Parecem atemorizadas.
Virando-se para o jornalista:) É
remédio santo, ficam logo calminhos para quinze dias! Quanto ao paizinho, vou
esperar pelo começo do fim da crise, que isto hoje em dia morrer é um luxo! E o
paizinho viveu humildemente, mas resolveu morrer acima das suas possibilidades!
Não se pode morrer em qualquer altura!
Jornalista – Bom, muito obrigado! (Virando-se para a câmara, terminando o
“directo”:) Bom, Hélder, daqui é tudo por agora (com a naturalidade possível. Termina a ligação ao estúdio, virando-se
depois para o Pai, chefe de família:) Bom, muito obrigado mais uma vez pela
sua colaboração…
Pai chefe de
família –
Ora essa! Vai uma cervejinha fresquinha? (Bate
na arca com força, grita para o seu interior:) Oh, mãezinha, passe aí duas
bojecas fresquinhas, se faz favor… (A
tampa abre-se, uma mão ergue duas garrafas de cerveja. O homem pega nas
garrafas, dá uma ao jornalista, choca a sua garrafa no do outro, atónito e sem
reacção).
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