Assalto por esticão

Jornalista - Boa noite, o meu nome é Esperança Santiago e sou jornalista sensacionalista. Na verdade, gosto mais de olhar para o meu trabalho como jornalismo de sensações, de emoções, um jornalismo para as pessoas, pois parece-me que ilustra melhor aquilo que faço. Hoje vamos abordar o terrível fenómeno das dúvidas que assaltam, nomeadamente, que assaltam pessoas. Para isso temos como convidado Valdemiro Leónidas, vamos chamar-lhe assim, em primeiro lugar, para preservar o seu anonimato; em segundo, porque é o seu nome. Diga-nos Valdemiro, a sociedade em que vivemos hoje continua a estigmatizar de forma cruel as vítimas de dúvidas?

Valdemiro Leónidas - (Voz distorcida) Sem dúvida alguma, Esperança. É uma sociedade muito preconceituosa, sobretudo, em relação às pessoas que são vítimas deste tipo de ataque bárbaro e cobarde.

Jornalista - Para que as pessoas lá em casa percebam a verdadeira dimensão do que estamos a falar, pode contar-nos como tudo começou?

Valdemiro Leónidas - Começou tudo de uma forma muito ligeira. A primeira vez que fui assaltado por dúvidas foi por esticão a pé. Eu ia para casa e uma velhinha chegou-se à minha beira (Pausa), puxou-me o braço com alguma veemência, não disse nada e, consoante apareceu, desapareceu.

Jornalista - (Ar compungido) E depois?

Valdemiro Leónidas - Depois fiquei cheio de dúvidas. O que é que a velhota queria? Porque é que se aproximou de mim? Um gajo fica maluco, claro!

Jornalista - (Acena afirmativamente a cabeça em sinal de compaixão) O que é que passa pela cabeça de uma pessoa numa altura como essa?, deve ser a pergunta que está a fazer a grande maioria das pessoas lá em casa...

Valdemiro Leónidas - (Faz um compasso de espera antes de responder, para segurar a forte emoção) Passa tudo, Esperança! Passa tudo! Sim, inclusivamente, que aquela mulher poderia querer... (não acaba a frase, sucumbe à emoção)

Jornalista - (Estende-lhe um lenço de papel, pede à realização um copo de água, que um assistente traz de forma diligente) Compreendo, compreendo (Aguarda que o outro beba a água e se recomponha...). Quando estiver preparado, continuaremos esta entrevista. (Virando-se para a câmara) O relato de Valdemiro é um documento impressionante que, estou certa, poderá ajudar outras pessoas, nas mesmas circunstâncias do Valdemiro, a denunciarem as situações em que foram vítimas do mesmo tipo de abusos. (Olha o outro que lhe faz sinal de estar recomposto) Depois desta primeira situação que nos acaba de relatar, o que se passou a seguir?

Valdemiro Leónidas - Bom, depois fui assaltado por esticão de mota. Um indivíduo deslocava-se num velocípede a motor, no mesmo sentido que eu, e no momento exacto em que passou por mim esticou o braço e saudou-me como se me conhecesse.

Jornalista - Realmente...

Valdemiro Leónidas - Ainda hoje estou para saber se conhecia o homem ou não! Mas com o capacete a dúvida instala-se para sempre... Foi como se tivesse sido molestado por um bando de pinguins...

Jornalista - De pinguins?! Mas porquê pinguins?!

Valdemiro Leónidas - Eh pá, não sei explicar o porquê!... É daquelas coisas que só uma pessoa que passa por elas é que sabe! Só a quem as dúvidas já assaltaram por esticão de mota é que poderá compreender o que eu senti naqueles segundos que pareceram uma eternidade... (Abana afirmativamente a cabeça como quem diz "ah pois é!")


Jornalista - Foi então que a coisa começou a piorar?...

Valdemiro Leónidas - Foi, infelizmente foi... Um dia ao tentar entrar no carro levei um esticão no puxador da porta à conta da electricidade estática.


Jornalista - Então e depois?...

Valdemiro Leónidas - Depois fiquei na dúvida: entro?, não entro?, entro?, não entro? Nem me quero lembrar...


Jornalista - Até que um dia...

Valdemiro Leónidas - Pois, até que um dia fui assaltado por dúvidas que não lembra nem ao diabo uma coisa destas! Estava eu em casa, descansadinho, a tirar crostas do nariz, que neste tempo, à conta das alergias tem sido uma coisa por demais, quando os meus filhos se aproximam à traição e me fuzilam com jactos de pistolas de água. Aí eu disse para mim próprio: isto está a assumir contornos de uma extrema violência! Tenho de fazer qualquer coisa! E daí eu estar aqui hoje!


Jornalista - E depois?...

Valdemiro Leónidas - Depois riram-se! Esta miudagem tem brincadeiras cada vez mais agressivas! E claro, eu fiquei com a cabeça cheias de dúvidas. Que futuros adultos estamos a formar? Que amanhã estamos a construir?


Jornalista - (Virando-se para a câmara) Foi um testemunho na 1.ª pessoa, um grande exemplo de coragem que tivemos aqui hoje. Obrigada por ter estado desse lado, foi um prazer estar consigo.

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