Ao domingo há cabrito

Quando era miúdo costumava ir a casa de umas pessoas estranhas, com a minha mãe. Essas pessoas eram estranhas porque tinham mais de uma centena de cães a dormir no soalho comido pelo bicho da madeira, a mijar e a copular em salões amplos e anteriores à criação do mundo. Lá viviam duas irmãs e um homem, que era marido duma delas. A principal atracção da casa era cães ao colo de humanos, como se fossem crianças pequenas, com as patas da frente abertas no ombro de uma das mulheres, a que tinha os dentes da frente iguais ao bugs bunny, e as de trás a esgravatar no ventre. A outra irmã raramente falava, raramente andava (ficava sobretudo parada e dava pequenos passinhos para o lado quando sentia poder estorvar). A casa situava-se numa quinta do Minho, tinha à chegada um velho datsun estacionado debaixo de uma sacada de vinha. Íamos ao domingo. O carro estava sempre enfeitado com cães: cães no capô, cães no tejadilho, focinhos pendentes das barras laterais da grade de carga, situada na parte superior do carro, lombos dobrados contra os pneus, cães em cima do datusn como peluches a pilhas em cima de uma cama. Eu fazia sempre força para não entrarmos, que ficássemos do lado de fora, ao que íamos lá fazer, mãe, nem vale a pena entrar, deixa estar, ficamos aqui. Mas a minha mãe, valente, entrava e eu, cagarola, entrava para a defender, apesar do fascínio dos cães, das teias de aranha, dos ares de bruxa das irmãs e do homem, um personagem de Poe. Tudo íman para o medo, essa escavação nas profundezas de uma criança. Sente-se, dona Helena! Sente-se, dona Helena! Sente-se! Sente-se! Não te sentes, mãe! Não te sentes, mãe! Não te sentes, dizia-lhe caladinho, encostado a ela como uma cria, caladinho, encostado dizia-lhe tudo, caladinho! Ela percebia, dizia: não é preciso, não vamos demorar nada! Passamos apenas para dizer olá! Olá, olá, caladinho, agora vamos, dizia encostado, caladinho. Sente-se, dona Helena! Sente-se, dona Helena. Sente-se! E ela sentava-se, e eu olhava em redor os quadros inclinados em paredes de estuque a cair, os cães roçando-me nas pernas, cheirando-me os gatos que deixei em casa - sempre tivemos gatos - sempre dois, sempre gatos, os cães desconfiando de mim. Pronto, agora temos mesmo de ir, dizia a minha mãe! Sente-se dona Helena! Sente-se, dona Helena! Sente-se! Fiquem para almoçar. Hoje há cabrito, dona Helena, sente-se, há cabrito no forno pronto a sair.

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